Depressão resistente: do diagnóstico ao tratamento
Quando comecei a trabalhar em meu consultório, no final da década de 1980, a maioria dos pacientes que me procuravam com depressão era virgem em relação a tratamento farmacológico. Essa foi uma experiência não somente minha como também de toda uma geração. Naquela época, a psicofarmacologia não era popular. Os antidepressivos eram medicamentos evitados por ser considerados “perigosos”, desconfortáveis e difíceis de introduzir. Somente alguns psiquiatras e raros neurologistas os prescreviam. Com a introdução dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS), houve uma mudança radical nesse cenário. Havia baixo risco, assim como poucos efeitos colaterais, e a dose inicial já era a terapêutica! Tudo ficou muito fácil, o que possibilitou a popularização desses medicamentos. Muitos outros médicos passaram a receitá-los. Com o passar do tempo, progressivamente os psiquiatras passaram a tratar os pacientes que não respondiam às primeiras tentativas de tratamento antidepressivo, muitas vezes feitas por clínicos, cardiologistas e ginecologistas, entre outros. Ou seja, no caso da depressão, cada vez mais o psiquiatra será um especialista de casos resistentes. Por isso, quer goste, quer não, o psiquiatra terá de ser, cada vez mais, um estudioso desse tema.
O que é depressão resistente ao tratamento?
Há várias definições possíveis, entretanto todas elas levam em consideração o número de tentativas de tratamento que não tiveram sucesso. É claro que, para ser considerado ineficaz, um medicamento deve ser administrado na dose certa e durante o tempo correto! A qualidade do fármaco também é crucial. Para que se considere também o número de tentativas que falharam, é importante que haja a progressão da potência do tratamento. Um paciente, por exemplo, que não respondeu a um ISRS, nem posteriormente a outro, não sei se pode ser considerado resistente, visto que são dois medicamentos da mesma classe (embora apresentem alguma diferença entre si). Já um paciente que não respondeu a um ISRS, nem posteriormente à associação entre um ISRS e um antidepressivo tricíclico (ADT), pode ser considerado refratário se o critério que usarmos for a ausência de resposta a dois tratamentos eficazes.
Entretanto, os tratamentos não são tão organizados assim. Muitos fatores determinam a escolha do medicamento, e a sucessão de tratamentos muitas vezes parece errática se olharmos pelo prisma da resistência. O paciente solicita, por exemplo, que o medicamento não apresente certos efeitos colaterais, e o médico o atende prescrevendo um fármaco que se adapte a seu pedido, embora isso não seja o mais lógico em uma progressão para tratamento de depressão refratária. Dessa forma, para avaliar o grau de resistência de uma depressão aos tratamentos, devemos considerar sua duração, a gravidade dos sintomas, o número de antidepressivos utilizados, o uso ou não de estratégias de potencialização do tratamento e de eletroconvulsoterapia (ECT) (Fekadu et al., 2009)1,2
Falsas depressões resistentes
Em psicofarmacologia, o primeiro e mais crucial momento é sempre o do diagnóstico. Isso não é diferente na depressão resistente. Uma questão crítica da abordagem da depressão resistente é saber se o quadro depressivo aponta uma depressão unipolar (que é o tema da depressão resistente) ou uma depressão do transtorno de humor bipolar (THB). Essa diferença não é tão simples de estabelecer. A metade dos pacientes com THB inicia a doença com episódios depressivos (Goodwin & Jamison, 2007).3 Se esses pacientes forem tratados incorretamente não só não responderão de forma adequada como também sua condição poderá transformar-se em falsa depressão resistente. Para exemplificar essa situação, posso citar dois estudos em que 3.944 pacientes unipolares foram seguidos por até oito anos. Cerca de 30% dos pacientes difíceis de tratar (pelo menos duas mudanças de antidepressivos) tiveram evolução com a alteração do diagnóstico para THB, enquanto somente menos de 10% dos pacientes fáceis de tratar (uso de um antidepressivo) apresentaram essa mudança (Li et al., 2012).4 Assim, a resistência ao tratamento é um critério que faz pensar na possibilidade de o paciente ser bipolar e não unipolar.
Que fatores levam à resistência?
Vários fatores contribuem para que uma depressão seja mais difícil de tratar. A presença de sintomas residuais, por exemplo, é um fator de risco de recaída e de manutenção da depressão. Um estudo demonstrou que pouco mais de 70% dos pacientes assintomáticos permaneciam sem depressão após 100 semanas, enquanto somente pouco mais de 30% dos que tinham sintomas residuais não recaíram nesse tempo (Judd et al., 1998).5
O tipo de depressão também parece influenciar a resposta terapêutica. As depressões com sintomas psicóticos são mais resistentes ao tratamento convencional. Exemplificando, a associação entre venlafaxina e quetiapina foi mais eficaz do que a venlafaxina isolada no tratamento de pacientes com depressão acompanhada de sintomas psicóticos (Wijkstra et al., 2010).6
...como transtorno de personalidade borderline, pioram significativamente o prognóstico do quadro depressivo. As comorbidades clínicas também são frequentes na depressão: 99,8% dos pacientes com depressão grave apresentam uma ou mais dessas comorbidades (Gaebel et al., 2013).9
A depressão atípica, caracterizada por reatividade do humor ao meio ambiente, aumento do apetite e do peso, aumento do sono, sensação de peso nos braços e nas pernas, sensibilidade à rejeição e piora vespertina, caracteristicamente não responde aos ADT, apresenta alguma melhora com ISRS e responde bem aos inibidores da monoaminoxidase (IMAO) (Parker et al., 2002).7 O viés negativo intenso também pode ser um fator de resistência ao tratamento. Desde que se demonstrou que os antidepressivos modificam o viés negativo antes da resolução da depressão propriamente dita e que a melhora do viés negativo é um fator preditivo de melhora da depressão (Harmer et al., 2009),8 ganharam importância os sintomas de ruminação negativa e os sintomas obsessivos de ruína na resposta a tratamentos antidepressivos.
Outro fator que leva à resistência são as comorbidades, muito frequentes (Gaebel et al., 2013).9 A associação de depressão com transtornos do eixo I, como abuso de substâncias psicoativas, ou do eixo II, como transtorno de personalidade borderline, pioram significativamente o prognóstico do quadro depressivo. As comorbidades clínicas também são frequentes na depressão: 99,8% dos pacientes com depressão grave apresentam uma ou mais dessas comorbidades (Gaebel et al., 2013).9 Um dos possíveis mecanismos envolvidos nessa associação é o fato de que na depressão ocorre liberação de citocinas pró-inflamatórias, que podem gerar doenças não psiquiátricas, que por sua vez podem agravar a depressão, criando-se um círculo vicioso (Slavich et al., 2014).10
Fármacos para tratar a depressão resistente
Existem várias diretrizes para o tratamento da depressão resistente. Nelas se propõe uma progressão, partindo-se dos medicamentos mais frequentemente usados na abordagem inicial da depressão (em geral ISRS) e passando-se a tratamentos possivelmente mais eficazes, embora com maiores riscos e efeitos colaterais (como os ADT). Ao mesmo tempo, são propostas estratégias de potencialização (acréscimo de medicamentos que aumentam a potência do tratamento, chegando-se ao uso de eletroconvulsoterapia).
Em geral as estratégias utilizam o artifício de aumentar a eficiência do sistema serotonérgico, do noradrenérgico, do dopaminérgico e, mais recentemente, do glutamatérgico, enquanto outros sistemas são potencialmente alvo, como o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e o opioide. Geralmente um tratamento se inicia com um medicamento eficaz, confortável e seguro. Por esse motivo os ISRS são tão populares. Entretanto, caso o paciente não responda, duas estratégias podem ser adotadas.
...eficácia de técnicas psicoterápicas na abordagem da depressão resistente. A ativação comportamental e a terapia cognitiva e interpessoal parecem eficazes nesses pacientes (Cuijpers et al., 2008)18 e devem ser propostas em conjunto com o uso de fármacos.
1. Troca de medicamento
Nesse caso, adota-se a progressão para um medicamento que seja menos específico de um só neurotransmissor, como o uso de um medicamento dual (que age em serotonina e noradrenalina); caso este não funcione, recomenda-se o uso de um antidepressivo tricíclico.
2. Acréscimo de outro medicamento
Nesse caso duas estratégias são possíveis: aumentar o efeito do medicamento no sistema serotonérgico, o que poderia ser conseguido, por exemplo, acrescentando-se pindolol ao tratamento, que ao bloquear autorreceptores 5-HT1A promove a liberação de serotonina, que por sua vez se acrescenta à inibição da recaptação desse neurotransmissor (Martinez et al., 2000),11 ou acrescentar um medicamento que funcione em outro sistema, como a associação entre fluoxetina e nortriptilina, um clássico da depressão resistente. Nesse tipo de abordagem está a associação entre antidepressivos e antipsicóticos atípicos. Tais medicamentos (que são muito diferentes entre si) bloqueiam receptores diversos que têm como efeito a potencialização do efeito antidepressivo. Dependendo do antipsicótico, pode-se, por exemplo, bloquear receptores do tipo 5-HT2A, que aumenta a liberação de dopamina (Berg et al., 2008),12 do tipo 5-HT2C, que aumenta a liberação de dopamina e de noradrenalina em lobo frontal (Greenwood et al., 2012),13 do tipo 5-HT6, que em modelos animais, além de promover efeito ansiolítico, potencializa o efeito de antidepressivos (Wesolowska, 2010),14 do tipo 5-HT7, que afeta a morfologia neuronal e promove neurogênese no hipocampo (Abbas et al., 2009),15 do tipo α2 pré-sináptico, que libera a secreção de noradrenalina (Sazbo et al., 2004),16 e do tipo D2 pré-sináptico, que libera a secreção de dopamina (Roth, 1983).17
Além disso, é importante ressaltar a eficácia de técnicas psicoterápicas na abordagem da depressão resistente. A ativação comportamental e a terapia cognitiva e interpessoal parecem eficazes nesses pacientes (Cuijpers et al., 2008)18 e devem ser propostas em conjunto com o uso de fármacos.
Em termos práticos...
Toda especialidade médica é dinâmica em razão das mudanças tecnológicas e sociais. No caso da depressão, a popularização do tratamento farmacológico antidepressivo mudou o perfil dos pacientes com depressão que chegam ao psiquiatra. Paradoxalmente, esse instrumento, que veio para facilitar o tratamento, tornou mais complexa a prática, já que cada vez mais pacientes que não responderam às tentativas iniciais de tratamento são vistos no consultório. Como especialista, o psiquiatra deve estar apto a abordar o problema e resgatar esse paciente de seu sofrimento e das consequências dessa condição médica tão nefasta.