O biotipo cognitivo da depressão

O comprometimento cognitivo no Transtorno Depressivo Maior (TDM) parece ter uma associação com sintomas depressivos específicos, disfunção em circuitos neurais e pior resposta aos antidepressivos. Para entender melhor este cenário, é importante identificar se há um subgrupo cognitivo clinicamente distinto de pacientes, e, se este padrão tem influência no resultado do tratamento.

Em um estudo publicado em junho de 2023 no JAMA, foi realizada uma análise de medidas biológicas e não biológicas para caracterizar o chamado biotipo cognitivo no TDM.

Um maior conhecimento sobre possíveis biomarcadores para este biotipo pode ajudar na escolha de estratégias terapêuticas mais apropriadas para este grupo de pacientes.

Foi realizada uma análise secundária de 1008 indivíduos previamente matriculados em um estudo clínico randomizado para TDM (o Estudo Internacional de Previsão de Tratamento Optimizado na Depressão- iSPOT-D). A amostra completa foi usada para todas as análises, exceto para as avaliações de neuroimagem funcional e estrutural, para as quais foi considerada uma subamostra de 96 pacientes. No início do estudo, realizou-se avaliação cognitiva (através de uma bateria de testes computadorizada padronizada- IntegNeuro), dos sintomas depressivos (Escala de Classificação da Depressão Hamilton-HAM D 17 e Inventário Rápido de Sintomatologia Depressiva Autorrelatada- QIDS-SR 16), da capacidade funcional (Escala de Avaliação do Funcionamento Social e Ocupacional- SOFAS) e neuroimagem funcional. Os pacientes foram randomizados na proporção de 1:1:1 para escitalopram (336 pacientes), sertralina (336 pacientes) ou venlafaxina-XR (336 pacientes); 712 pacientes completaram o tratamento e foram reavaliados nos mesmos parâmetros após 8 semanas de tratamento.

Considerando a cognição, os dados foram agrupados para caracterização do comprometimento cognitivo.

Os domínios com pior resultado foram função executiva e inibição da resposta do controle cognitivo.

Antes da introdução do tratamento, este subgrupo correspondia a 27% dos pacientes.

Em relação às manifestações clínicas, foi observado um padrão de sintomas específicos nas escalas de avaliação:

 

  • Processamento de informação mais lento e maior esforço para pensar ou atraso; psicomotor (item 8 da HAM D-17 e item 15 da QIDS-SR16);
  • Maior número de despertares noturnos (item 5 da HAM D-17);
  • Acordar mais cedo (item 6 da HAM D-17 e item 3 da QIDS-SR16);
  • Dormir pouco (item 4 da QIDS-SR16);
  • Menos auto-culpa (item 11 da QIDS-SR16).

 

Quanto ao funcionamento psicossocial, identificou-se pior desempenho medido pela SOFAS. Houve diminuição da resposta cerebral a uma tarefa cognitiva, com ativação reduzida das regiões pré-frontal dorsolateral direita e cingulado anterior dorsal, sugerindo um mecanismo neural subjacente distinto relacionado ao comprometimento cognitivo. Este padrão alinha-se com achados anteriores de neuroimagem quanto à função destas regiões, chamadas de circuito de controle cognitivo. Não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos quanto à gravidade da ansiedade, índice de massa corporal (IMC) ou volume estrutural do cérebro.

 

O grupo caracterizado como biotipo cognitivo apresentou menores taxas de resposta e remissão dos sintomas após o tratamento com antidepressivos pela HAM D-17, o que indica uma pior resposta à farmacoterapia padrão, em comparação ao grupo com desempenho cognitivo dentro da normalidade (chamado biotipo cognitivo negativo):

 

  • Resposta: 54,8% (biotipo cognitivo) x 64,9% (biotipo cognitivo negativo)
  • Remissão: 38,8% (biotipo cognitivo) x 47,7% (biotipo cognitivo negativo)

 

Além disso, houve persistência do comprometimento cognitivo, independentemente da alteração dos sintomas após o tratamento. Em pacientes com menor mudança no desempenho do controle cognitivo, a melhora no funcionamento psicossocial após o tratamento foi menor, adicionando evidências de que a disfunção cognitiva é uma das contribuintes para a incapacidade na depressão. Estes resultados também desafiam o pressuposto de que o déficit cognitivo melhora como um efeito secundário da melhora geral do quadro depressivo e apontam a necessidade de opções terapêuticas voltadas para os desfechos cognitivos.

Os achados sugerem a presença de um biótipo cognitivo de depressão, representando cerca de ¼ dos pacientes deprimidos.

Este perfil é caracterizado por comprometimento proeminente em 2 domínios do controle cognitivo (função executiva e inibição da resposta) e por um padrão clínico de processamento mais lento de informações (esperado, considerando o foco cognitivo deste subgrupo), bem como alterações do sono, em concordância com associações observadas anteriormente entre depressão, função executiva e sono. Além disso, há pior funcionamento psicossocial, função neural reduzida no circuito neural de controle cognitivo e respostas mais pobres após o tratamento antidepressivo convencional, destacando-se desfechos piores no tratamento com a sertralina. Vale ressaltar que é possível que outros fatores comportamentais ou neurobiológicos ainda não identificados contribuam para a disfunção cognitiva neste grupo de pacientes.

 

Estes resultados juntam-se a dados crescentes de que os tratamentos específicos para os circuitos de controle cognitivo são cada vez mais necessários.

A publicação ainda destaca a vortioxetina como opção promissora, por conta da melhora cognitiva promovida.

 

Estudos futuros devem utilizar modelos de biomarcadores para avaliar se de fato haverá melhora nos resultados do biotipo cognitivo com estratégias terapêuticas voltadas para alvos cognitivos e seus mecanismos no Transtorno Depressivo Maior.

 

 

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Referências

Hack LM,et al. A Cognitive Biotype of Depression and Symptoms, Behavior Measures, Neural Circuits, and Differential Treatment Outcomes: A Prespecified Secondary Analysis of a Randomized Clinical Trial. JAMA Netw Open. 2023 Jun 1;6(6):e2318411