Personalidade ou bipolaridade

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Introdução

O tema acima proposto é central para a obtenção de diagnósticos corretos em psiquiatria e gera discussões infindáveis, principalmente em nosso país, onde o transtorno de personalidade limítrofe, ou borderline, atinge níveis de instituição sagrada. Tendo tido o imenso prazer de assistir em 2014 à palestra de um longevo, mas inteiramente lúcido, Otto Kernberg na APA e de ouvi-lo afirmar que os borderlines são portadores de doença do neurodesenvolvimento,1 penso ser da maior utilidade a abordagem do tema da ciclotimia, transtorno com profundas raízes na história da psiquiatria nos últimos 60 anos, mas inteiramente negligenciado pelos experts em transtornos do humor. 

A tendência recente (DSM-5 e CID-10) de vê-la como transtorno no capítulo sobre transtornos do humor (bipolar) e apenas como uma patologia afetiva tem levado a confusões e a más interpretações. Na presente classificação de doenças psiquiátricas, ela é um subtipo de transtorno bipolar caracterizado pela apresentação crônica de grau mais leve de estados hipomaníacos e depressivos. A visão de ciclotimia como predisposição temperamental associada à impulsividade e a flutuações do humor2 possivelmente representa um elo e um fator de risco entre desenvolver uma gama variada de psicopatologia, como bipolar tipo I e bipolar tipo II, e muito mais como outros transtornos do humor, transtornos de ansiedade, transtornos de personalidade, transtornos alimentares e transtornos do impulso, incluindo-se abuso de álcool e drogas e outros comportamentos aditivos.3 

Essa visão tem a ciclotimia como um estágio intermediário do desenvolvimento de muitas outras doenças mentais.

História 

Ewald Hecker, pupilo de Ludwig Kahlbaum,4 foi o primeiro a fazer uma descrição acurada de sua psicopatologia e, em conjunto com seu mestre, os fazem os pais da moderna conceituação de ciclotimia. 

Quase ao mesmo tempo, o psiquiatra francês Pierre Khan (1909) foi fundamental em sua contribuição ao conceito de ciclotimia,5 com uma descrição cuidadosa de sua psicopatologia e de seu quadro clínico, baseado na apresentação de 30 casos clínicos. Neles ficam bem claros fases de hipertimia, fases depressivas, estados mistos, instabilidade do humor e reatividade deste, problemas relacionais e comportamentais, comorbidades múltiplas, apresentações conjuntas com estados “neuróticos” hoje considerados TOC, pânico, ansiedade social e transtornos somatoformes, além de abuso de álcool e de drogas. 

Mais recentemente, Akiskal6 resgata a visão kraepeliniana de ciclotimia como um temperamento, um dos estados “básicos ou fundamentais”, e assim foi incorporada pelos sistemas oficiais de DSM e CID no capítulo sobre transtornos do humor. 

Psicopatologia 

Ao contrário do que apresentam as classificações oficiais, uma forma atenuada de transtorno do humor, a ciclotimia é caracterizada pela instabilidade do humor e uma hiper-reatividade à estimulação positiva e negativa em termos de intensidade e duração. Essas manifestações, intensas e rápidas flutuações do humor de polaridades opostas associadas com variações de energia e motivação, apresentam relevantes consequências psicológicas, interpessoais e comportamentais. Essas são as apresentações clínicas mais comuns. Isso tudo costuma ocorrer em continuidade com o “eu” habitual da pessoa. Como essas características costumam ser observadas muito cedo, desde a infância ou a adolescência, são identificadas como distúrbios ou transtornos de personalidade. As depressões são vistas e explicadas como reações a momentos mais estressantes da vida da pessoa e as elações ou excitações são ignoradas e tidas como sensações de bem-estar. 

A alta sensibilidade a julgamentos e críticas e à rejeição pode configurar um quadro capaz de precipitar consequências graves, como hostilidade e raiva contra os outros, automutilação e tentativas de suicídio.14

A depressão e a hipomania podem ser vistas, e os pacientes com mudanças bruscas de humor podem ser considerados cicladores rápidos ou ultrarrápidos.7 

Como é de esperar, os sintomas depressivos são mais facilmente identificados do que a sintomatologia hipomaníaca. A depressão ciclotímica8,9 costuma apresentar gravidade de média a moderada e se caracteriza por desesperança, angústia, fadiga e sintomas atípicos. 

Outros sintomas frequentemente associados são baixa autoestima, culpa, insegurança e dependência, emocionalidade, agitação e alta sensibilidade, com altos níveis de irritabilidade e ansiedade.10 

As hipomanias são de difícil identificação porque podem durar poucas horas ou poucos dias (um ou dois).11 Costumam ser hipomanias obscuras, com irritabilidade, impulsividade e comportamento de risco.12 A presença de irritabilidade durante as crises de hipomania pode ser um fator de confusão diagnóstica com transtornos de personalidade.13 

A hiper-reatividade emocional e a instabilidade são características centrais da ciclotimia. 

Aparecem como um traço estável desde a adolescência e apresentam crescente reatividade a estimulações ambientais. Os eventos negativos podem originar-se das mais variadas formas, como frustrações amorosas, alterações meteorológicas, químicas (como uso inadequado de antidepressivos) e outras. 

A alta sensibilidade a julgamentos e críticas e à rejeição pode configurar um quadro capaz de precipitar consequências graves, como hostilidade e raiva contra os outros, automutilação e tentativas de suicídio.14 O dano que essas ações podem causar é por vezes irreparável à vida interpessoal dos pacientes. 

Uma correlação significativa entre ansiedade de separação, hipersensibilidade interpessoal e instabilidade ciclotímica do humor foi demonstrada em vários estudos de importância.15 O medo da separação, quando associado a estados de raiva e hostilidade, pode tornar extremamente difíceis as relações amorosas, familiares e de trabalho. 

A grande reatividade dos ciclotímicos durante episódios de hipomania pode facilitar a emergência de verdadeiros transtornos do controle do impulso, como o jogo patológico e a sexualidade compulsiva entre os homens e a compra compulsiva e o comer compulsivo entre as mulheres.16 

Controvérsia: espectro bipolar x transtorno de personalidade borderline 

Em ambas as classificações, CID-10 e DSM-5, o conceito de ciclotimia é incluído em transtornos do humor como uma forma prolongada de alteração do humor aonde critérios para depressão maior e hipomania não são preenchidos. Uma mudança significativa, que por certo passará despercebida entre nós, ocorreu na classificação DSM-5 em que episódios de hipomania foram substituídos por sintomas de hipomania; se tal categoria fosse levada a sério, isso poderia ampliar consideravelmente o número de pessoas com esse diagnóstico. Em ambas as classificações, tudo o que foi comentado em nossa seção sobre psicopatologia, os sintomas fundamentais, suas consequências psicológicas e anormalidades comportamentais, é totalmente ignorado. A ênfase, infelizmente, é única e exclusiva nos sintomas do humor. 

Os sintomas básicos e fundamentais de instabilidade afetiva e de intensa emocionalidade e impulsividade, com as consequências psicológicas, comportamentais e interpessoais, estão descritos nos transtornos de personalidade do grupo dramático e do grupo ansioso (DSM-5) e nas definições de transtorno de personalidade emocionalmente instável e histriônica (CID-10).17 

A instabilidade do humor em transtorno de personalidade borderline e no espectro bipolar foi estudada em diversos trabalhos através da Escala de Labilidade Afetiva (ALS, na sigla em inglês), um escore de autoavaliação em vários domínios, como raiva, elação, depressão e ansiedade.18 

Altas pontuações nessa escala foram encontradas nos dois transtornos. 

A conclusão dos autores é de que foi um erro colocar os instáveis, irritáveis, ansiosos e lábeis no campo dos distúrbios de personalidade, e apenas os depressivos/eufóricos/eutímicos como verdadeiros bipolares. 

Em realidade os borderlines, na grande maioria, constituem uma subpopulação de ciclotímicos com marcada e grave impulsividade e irritabilidade. 

A experiência clínica na realidade sugere dois polos para a ciclotimia: um deles é a base do comportamento antissocial e psicopático e o outro representa aptidões como criatividade e capacidade de liderança. Isso tudo depende de uma multiplicidade de fatores ambientais, de exigências e expectativas. 

Até hoje duas visões coexistem e contrastam. Muitos pensam que a maioria dos pacientes com transtorno borderline tem psicopatologia similar à do espectro bipolar e a mesma resposta terapêutica,19 enquanto outros,20 apesar da similitude psicopatológica, preferem ver o transtorno bipolar como “biológico” e o transtorno borderline como de origem “psicossocial”, em contraste com a visão mais atual de Kernberg.1 

As discussões sobre neurobiologia, os achados sobre neuroimagem e o valor do trauma/abuso sexual durante a infância na gênese dessas patologias fogem ao objetivo deste pequeno artigo/comentário, mas devemos deixar assinalado que a grande maioria dos pacientes com transtorno de personalidade borderline não reporta história pessoal de abuso.21 

Nosso objetivo com esse texto foi chamar a atenção para um dos diagnósticos fundamentais da psiquiatria, a ciclotimia, que pode ser o elo e a base da explicação de um número enorme de pacientes de difícil controle, com apresentação psicopatológica intrincada e mutante, assim como de evolução e tratamento muito complexos. 

Referências

  1. Kernberg, Otto. Aula proferida no encontro da American Psychiatric Association, Nova Iorque, EUA, Maio,2014.
  2. Perugi ,G, Akiskal H.S., 2002.The soft bipolar spectrum redefined: focus on cyclothymic, anxious sensitive, impulse-dyscontrol, and binge-eating connection in bipolar II and related conditions. Psychiatr Clin North Am 25, 713-737. 
  3. Maremmani I,Perugi G, Pacini M, Akiskal H,S, 2006. Toward a unitary perspective on the bipolar spectrum and substance abuse: opiate addiction as a paradigm. Journal of affective Disorders 93, 1-12.
  4. Baethge C, Salvatore P, Baldessarini RJ , 2003b ‘On cyclic insanity” by Karl Ludwig Kahlbaum, MD: translation and commentary. Harv Rev Psychiatry 11,78-90.
  5. Kahn P, 1909. La Cyclothymie: De la constitution cyclothymique et ses manifestations (Depression et Excitation Intermittentes), G. Steinheil, Editeur, Paris.
  6. Akiskal HS, Khani MK, Scott-Strauss A,1979. Cyclothymic temperamental disorders. Psych Clin North Am 2, 527-554.
  7. Mackinnon DF, Pies R, 2006. Affective instability as rapid cycling: theoretical and clinical implications for borderline personality and bipolar spectrum disorders. Bipolar Disord 7,441-448.
  8. Akiskal HS, Pinto O, 1999.The evolving bipolar spectrum. Prototypes I,II,III and IV. Psychiatr Clin North am 22, 517-534.
  9. Perugi G, Akiskal HS, Lattanzi L, Cecconi D, Mastrocinque C, Patronelli A, Vignoli S, Bemi E, 1998. The high prevalence of “soft” bipolar features in atypical depression. Compr Psychiatry 39,63-71.
  10. Alnaes R, Torgensen S, 1989. Personality and personality disorders among patients with major depression in combination with dysthymic or cyclothymic disorders, Acta Psychiatr Scand 79, 363-369.
  11. Angst J, Gamma A, Neuenschwander M, Adjdacic V, Eich D, Rossler W, Merigangas KR, 2005. Prevalence of mental disorders in the Zurich Cohort Study: a twenty year prospective study. Epideiol Psichiatr Soc 14, 68-76.
  12. Hantouche EG, Angst J, Akiskal HS, 2003a. Factor structure of hypomania: interrelationship with cyclothymia and the soft bipolar spectrum. Journal of Affective disorders 73. 39-47.
  13. Stone MH. 2013b. A new look at borderline personality disorder and related disorders: hiper reactivity in the limbic system and lower centers. Psychodyn Psychiatry 41, 437-466.
  14. Akiskal HS, Downs J, Jordan P, Watson S, Daugherty D, Pruitt DB. 1985. Affective disorders in referred children and young siblings of manic-depressives mode of onset and prospective course. Arch Gen Psychiatry 42,996-1003.
  15. Toni C, Perugi G, Frare F, Tusini G, Fountoulakis K, Akiskal K, Akiskal HS. 2008. The clinical-familial correlates and naturalistic outcome of panic-disorder-agorafobia with or without lifetime bipolar II comorbidity. Annals of General Psychiatry 7,1-9.
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  21. Paris J, 1998. Does childhood trauma cause personality disorders in adults? 1998. Can J Psychiatry 43(2):148-53.