
O transtorno depressivo maior (TDM) é um transtorno psiquiátrico comum, que afeta mais de 300 milhões de indivíduos em todo o mundo1, com manifestações psicológicas, físicas e comportamentais que podem ser complexas e variar amplamente entre os pacientes2.
Em geral, os pacientes com TDM apresentam um período prolongado de humor deprimido, frequentemente acompanhado de baixa autoestima, perda de interesse em atividades, sentimento de falta de esperança e redução da energia2. Há comprometimento da qualidade de vida3,4, de múltiplos domínios cognitivos, do rendimento profissional ou acadêmico, ocorrendo suicídio, aproximadamente, entre 4% e 15% dos pacientes5-8.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria, atualmente na sua 5ª Edição (DSM-5), lista o comprometimento cognitivo (diminuição da capacidade de pensar ou de se concentrar ou indecisão) como um critério diagnóstico para o TDM8 e, recentemente, a FDA (Food and Drug Administration, agência reguladora federal norte-americana para alimentos e medicamentos) identificou a disfunção cognitiva como um alvo terapêutico nesses pacientes2.
Este reconhecimento é importante, pois sabe-se que o TDM pode afetar negativamente a cognição9,10. O comprometimento cognitivo se manifesta por sintomas muito prevalentes e persistentes, evidenciados tanto na fase aguda da doença como na fase de remissão11,12, através das escalas de avaliação da depressão atualmente utilizadas, representando uma parcela importante dos sintomas residuais associados à doença. Alguns autores associam a sua presença mais evidente à gravidade da depressão, sendo que os pacientes com episódios mais graves podem apresentar maiores comprometimentos cognitivos, assim como ocorre com os demais sintomas9. Porém, há também estudos que evidenciam a presença de alterações cognitivas significativas desde o primeiro episódio depressivo13, independentemente de sua gravidade, o que faz com que seja importante estarmos atentos aos mesmos, para que possam ser também um alvo de tratamento. A permanência de sintomas residuais cognitivos, muitas vezes após a melhora de sintomas emocionais e físicos, está associada a impactos importantes na funcionalidade, sendo que também pode contribuir para um maior risco de recaídas11,14,15.
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Neuropsicologia, funções cognitivas e funcionalidade
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O comprometimento cognitivo no TDM irá se manifestar, principalmente, por alterações de alguns domínios cognitivos, como atenção/concentração e memória, pela redução da velocidade de processamento e por implicações no funcionamento executivo, o que leva a uma leitura inadequada do ambiente e gera dificuldades na capacidade de manter um conjunto apropriado de soluções para possíveis problemas associados ao atingimento de um objetivo futuro10.
Não se sabe ao certo se existem classes de antidepressivos superiores a outras na melhora das alterações cognitivas associadas ao TDM, uma vez que ainda não existem estudos comparativos diretos realizados com este objetivo2. Há estudos que sugerem que os inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSNs) e um antidepressivo de outra classe, a vortioxetina, podem melhorar diferentes domínios cognitivos que estão alterados nos pacientes com TDM16.
É importante considerar dois aspectos na escolha do antidepressivo para pacientes com TDM e comprometimento da função cognitiva: uma possível influência positiva do fármaco sobre a função cognitiva, ou seja, eficácia sobre sintomas cognitivos, e potenciais efeitos adversos sobre ela, o que potencialmente poderia estar associado a uma piora desses sintomas. Isso porque há evidências que sugerem que alguns antidepressivos podem afetar negativamente a função cognitiva2,9. Dessa forma, é importante destacar que a melhora dos sintomas de humor no TDM, também chamados de sintomas emocionais, bem como dos sintomas físicos associados à doença, nem sempre será acompanhada pelo alívio dos sintomas cognitivos17.
A importância de também considerar os sintomas cognitivos como alvo de tratamento no TDM está associada a evidências que demonstraram existir uma maior probabilidade de recuperação funcional dessa população com a melhora desses sintomas. Muitos pacientes têm comprometimentos importantes em suas atividades profissionais, problemas para manter um lar, dificuldade em conduzir relações familiares e de amizade, além de inabilidade para administrar finanças, sempre em razão das alterações cognitivas causadas pela doença, que muitas vezes não são claramente associadas à mesma10.
A vortioxetina é um antidepressivo de última geração, com ação multimodal, associada à melhora dos sintomas emocionais e físicos do TDM, bem como à melhora significativa da cognição, conforme avaliação por diversos testes neuropsicológicos, em especial pelo Teste de Substituição de Dígitos por Símbolos (DSST), de forma independente da melhora dos sintomas depressivos18. Já foi demonstrado que a vortioxetina se associa à melhora direta dos sintomas cognitivos do TDM, independentemente do alívio dos outros sintomas depressivos presentes19. Uma revisão de artigos publicados que analisaram a melhora cognitiva através de quaisquer medidas de avaliação, evidenciou que, até o presente momento, a vortioxetina foi o único antidepressivo a fazer essa demonstração20 em relação aos quatro domínios cognitivos comumente alterados no TDM, de forma consistente e embasada em evidências, ou seja, em pelo menos dois estudos placebo-controlados e randomizados.
Para uma avaliação da relevância dos achados da vortioxetina em relação ao tratamento dos sintomas cognitivos no TDM, com foco nos resultados das avaliações pelo DSST, foi realizada por Baune et al. uma metanálise em rede com o objetivo de comparar os efeitos de diversos antidepressivos sobre os sintomas cognitivos no TDM, pelo DSST2.
Os autores fizeram uma revisão sistemática nas bases de dados Embase, MEDLINE, MEDLINE In-Process, Cochrane e PsychINFO por estudos clínicos randomizados, em adultos, que avaliaram o impacto de antidepressivos sobre a disfunção cognitiva no TDM. Também foram realizadas buscas em registros de dados e resumos de congressos de sociedades norte-americanas, europeias e outras internacionais2.
A metanálise permitiu comparar os efeitos de dois ou mais tratamentos ao agrupar as comparações diretas e indiretas existentes em uma cadeia de tratamentos. Para homogeneizar a avaliação da disfunção cognitiva, decidiu-se examinar apenas estudos que tivessem ao menos um grupo de tratamento antidepressivo e um com placebo, que utilizaram um mesmo tipo de avaliação cognitiva. A avaliação escolhida foi o DSST, sendo o desfecho considerado como a mudança média na pontuação do referido teste ao final do estudo, em relação ao início, em comparação com o placebo. O DSST é um teste neurocognitivo que avalia bem os quatro domínios comumente alterados na depressão. Assim, foi possível construir uma única rede “conectada”, através da qual foram feitas comparações entre os diversos antidepressivos2.
Esta análise incluiu 12 estudos clínicos randomizados, com um total de 3.738 pacientes, com idade média entre 36,6 e 79,6 anos, sendo a percentagem de indivíduos do sexo masculino entre 24% e 58%2. As intervenções utilizadas nos estudos compreenderam antidepressivos das classes dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs), dos inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSNs), dos tricíclicos e tetracíclicos, dos inibidores da monoaminoxidase (IMAOs) e antidepressivos ‘não ISRSs/IRSNs’. Foram realizadas duas metanálises em rede, uma considerando as classes de antidepressivos, conforme acima descrito, e outra entre os antidepressivos individualmente2.
Apesar do DSST ter sido considerado o único desfecho cognitivo para se obterem evidências homogêneas, permitindo assim uma comparação dos antidepressivos, cabe destacar que ele foi o desfecho primário em dois dos estudos incluídos, sendo um desfecho secundário nos demais. Outro ponto a ser destacado diz respeito ao momento de avaliação da mudança no DSST, que na amostra em questão foi realizada entre 3 e 24 semanas após a avaliação inicial. A vortioxetina e a duloxetina foram os antidepressivos com o maior número de pacientes com TDM avaliados através do DSST2. Os resultados obtidos para as diferenças médias padronizadas no DSST na comparação entre as classes de antidepressivos, assim como para os antidepressivos individualmente, podem ser vistos na Figura 12.