Embotamento afetivo: sintoma não resolvido do TDM ou efeito do tratamento?

Algumas evidências sugerem que o embotamento afetivo é um efeito adverso do tratamento, mas outras evidências indicam que é uma característica não resolvida do transtorno depressivo maior e, portanto, um alvo para um tratamento mais eficaz. Como você se posiciona nesta importante questão? Este ponto foi apresentado no ECNP 2019 durante um Expert Science Exchange.

OUÇA O LUNDCAST: Anedonia e Embotamento Afetivo na Depressão | Part. Dr. André Astete

 

O tratamento do transtorno depressivo maior (TDM) deve ter como objetivo a recuperação funcional completa, e isso requer melhora em todos os domínios – cognitivo, físico e emocional.1 Isso agora é amplamente aceito, assim como a necessidade de medicamentos bem tolerados, essenciais para promover a adesão e, assim, minimizar o risco de resposta parcial e recaída.

Infelizmente, o embotamento afetivo - incluindo sentimentos de desapego, perda de interesse e prazer - é uma experiência comum durante o tratamento, sendo relatado por um terço e meio dos pacientes com TDM em uso de uma ampla gama de agentes antidepressivos.2 É também, para os pacientes, um motivo frequente para parar o tratamento. Em um estudo canadense recente de 316 pessoas com TDM, 35% daqueles que descontinuaram a medicação citaram como causa o embotamento afetivo.3

Em um estudo recente, 35% das pessoas que descontinuaram o medicamento citaram embotamento afetivo.3

O embotamento afetivo pode ter efeitos adversos na tomada de decisões e nos relacionamentos, e resultar em autocuidado precário e até pensamentos de autoagressão, em um esforço para sentir emoção.4 O embotamento afetivo também pode ser refletivo na redução do desejo sexual e na apatia. Qualquer uma dessas características pode reduzir a qualidade de vida.5 A presença dessas características sugerem a seguinte questão: o embotamento afetivo é uma consequência da doença ou do seu tratamento?

 

Embotamento afetivo como efeito adverso

Entre outros, Guy Goodwin e colegas de Oxford chamaram a atenção para o fenômeno de anestesia emocional e sensibilidade reduzida que pode surgir em determinadas pessoas tratadas para TDM. O fato de que isso possa surgir mesmo quando a depressão em si diminui sugere que o fenômeno não faz parte da síndrome clínica, mas uma consequência do seu tratamento com medicamentos antidepressivos.5  

O caso do embotamento afetivo como efeito do tratamento medicamentoso foi discutido por Andrea Fagiolini (University of Siena Medical Center, Siena, Itália). Esse argumento é reforçado, ele sustentou, por evidências experimentais de detecção reduzida de emoção facial negativa encontrada em estudos clínicos e de neuroimagem de voluntários saudáveis que tomam antidepressivos por menos de uma semana.6,7 É importante ressaltar que esse efeito da medicação na percepção da emoção é o inverso do observado na depressão clínica, que está associada ao aumento do reconhecimento de expressões faciais negativas versus positivas.

Como os pacientes com depressão clínica têm uma capacidade aumentada de reconhecer expressões faciais negativas versus positivas (viés de atenção negativo), esses dados sugerem que os antidepressivos reduzem a capacidade de detectar alguns estímulos negativos.

Os vieses induzidos por medicamentos no processamento emocional são o oposto dos observados no TDM não tratado.7

Além disso, parece haver um correlato cerebral do fenômeno comportamental induzido pelo tratamento antidepressivo. Em voluntários que tomavam medicamentos, a resposta da amígdala a rostos com medo mascarados diminuiu.7 Isso contrasta com o aumento da resposta da amígdala observada em pessoas com TDM.

Um apoio adicional à hipótese de que o tratamento pode causar embotamento afetivo vem de dados que sugerem um efeito dose-resposta e evidências de que o embotamento afetivo pode ser resolvido diminuindo a dose do medicamento usado ou  até mesmo sua descontinuação.8

Considerando a farmacologia responsável pelo embotamento afetivo, o Professor Fagiolini sugeriu que o fenômeno pode surgir de efeitos serotoninérgicos nos próprios lobos frontais ou modulação serotoninérgica inibitória do sistema dopaminérgico no mesencéfalo que se projetam para o córtex pré-frontal.

 

Transtorno emocional - parte não resolvida do próprio TDM

A existência e o impacto adverso do embotamento afetivo foram reconhecidos por Roger McIntyre (Universidade de Toronto, Toronto, Ontário, Canadá), quem observou que cerca de 30% das pessoas que tomavam medicamentos para TDM relatam alguma forma de apatia. No entanto, ele argumentou que isso pode simplesmente refletir o fato de que os agentes antidepressivos nem sempre tratam efetivamente o componente de transtorno emocional inerente ao TDM.2

Associação com medicamento não significa conexão causal.2

Evidências de cerca de 4.000 participantes inscritos no estudo STAR*D mostraram que o baixo humor e a perda de interesse foram as principais características da depressão desde o início.9 Juntamente com o déficit cognitivo, o humor deprimido e a experiência de recompensa reduzida foram responsáveis por metade do comprometimento observado na função psicossocial.9

O Professor McIntyre também citou evidências de que a anedonia está presente em cerca de 75% das pessoas com TDM, está associada ao mau prognóstico e a resposta subótima ao tratamento e pode estar relacionada a alterações nas vias dopaminérgica, mesolímbica e mesocortical centrais da recompensa.10-13

Embora existam evidências de ensaios clínicos que tratamento com antidepressivo melhora o embotamento afetivo presente no basal,2,14 a resolução dessa dimensão da depressão é muitas vezes incompleta. Houve consenso que alcançar a recuperação funcional completa, além de resolver os sintomas, significa atingir todos os componentes da depressão e isso se aplica tanto ao transtorno emocional quanto à carga cognitiva e física do TDM.

Educational financial support for this expert science exchange at ECNP 2019 was provided by H. Lundbeck A/S

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Referências

1. Boyce PM. Med Today 2015;16:67-69

2. Goodwin GM et al. J Affect Disord 2017;221:31-35

3. Rosenblat JD et al J. Affect Disord 2019;243:116-120

4. Price J et al. Br J Psychiatry 2009;195:211-217

5. Price J, Goodwin GM. Medicographia 2009;31:152-156

6. Harmer CJ et al. Am J Psychiatry 2004;161:1256-1263

7. Harmer CJ et al. Br J Psychiatry 2009;195:102-108

8. Sansone RA, Sansone LA. Psychiatry (Edgmont) 2010;7:14-18

9. Fried EI, Nesse RM. PLoS One 2014;9:e90311

10. Cao B et al. Front Psychiatry 2019;10:17 

11. Franken IH et al. J Affect Disord 2007;99:83-89

12. Pan Z et al. Curr Pharm Des 2017;23:2065-2072 

13. Buckner JD et al. Psychiatry Res 2008;159:25-30 

14. Corruble E et al. Int J Neuropsychopharmacol 2013;16:2219-2234